Como a relação de confiança pode ser a chave para uma filantropia transformadora?
A pandemia criou um novo cenário da filantropia no Brasil. As doações em prol do combate ao novo coronavírus e assistência às populações mais atingidas pela crise econômica fluíram em volume e velocidade jamais registrados no país, ultrapassando R$ 6,5 bilhões de março a dezembro de 2020, segundo o Monitor das Doações, uma iniciativa da Associação Brasileira dos Captadores de Recursos (ABCR). Mas essa corrente do bem não se formou do dia para a noite. Há um solo que vem sendo cultivado para o desenvolvimento da cultura de doação no país. O adubo? A confiança.
A terceira edição do relatório Brasil Giving Report 2020*, que monitora a cultura de doação no país, já apontava essa tendência. Realizado em agosto de 2019, ainda com dados pré-pandemia, o estudo aponta que a percepção positiva do brasileiro em relação ao trabalho das ONGs aumentou em sete pontos percentuais. Para 79% dos entrevistados, o trabalho das organizações sociais em suas comunidades locais teve um impacto positivo, acima dos 72% em 2018 – foram feitas mil entrevistas online.
Mas ainda há um logo caminho a ser percorrido: um outro estudo, o Impacto da Covid-19 nas OSCs Brasileiras: da Resposta Imediata à Resiliência, realizado por Mobiliza e ReosPartners, publicado em agosto de 2020, revelou que, na ocasião, 46% das organizações da sociedade civil (OSCs) respondentes tinham caixa para operar por no máximo mais três meses e 69% precisavam de recursos para manter os custos operacionais. Desenvolvida no contexto da pandemia, a pesquisa reforça ainda mais a importância da confiança no Terceiro Setor para que as organizações recebam, de forma contínua, investimentos flexíveis, ou seja, desvinculados de projetos específicos, disponíveis para serem usados a critério da própria organização.
Embora pareça óbvio que o gestor de uma organização social seja a pessoa mais qualificada para alocar recursos dentro de sua área de expertise, na prática, os investidores sociais tendem a vincular suas doações a fins específicos dentro da organização e, na melhor das intenções, acabam por impor um uso não estratégico do recurso.
Confiança e investimento flexível
Um bom exemplo de investimento social flexível baseado em confiança ocorreu nos apoios firmados pelo Movimento Bem Maior com as 50 organizações sociais de base comunitária selecionadas via edital em 2019 em parceria com o Instituto Phi. O Coordenador de Relações Institucionais do MBM, Richard Sippli, nos conta que tão logo iniciou-se a quarentena no país, “nos organizamos rapidamente para entrar em contato com cada uma dessas organizações e entender as dificuldades pelas quais estavam passando naquele momento. Em pouco tempo ficou evidente que o foco havia mudado, nosso papel agora era ajudá-los a sobreviver enquanto organização e garantir acesso à alimentação e à higiene básica a seus beneficiários e equipes.”
Para ajudar na questão de alimentos, o MBM optou por realocar parte do recurso de outro projeto que aconteceria só em dezembro para financiar mais de 1200 cestas básicas, que foram distribuídas entre as 32 organizações que disseram precisar delas. Toda essa ação foi coordenada pelo Instituto Phi. Vale dizer que 18 organizações voluntariamente recusaram as cestas por entenderem que em suas comunidades não precisavam desse recurso tanto quanto as outras. “Isso demonstra o tipo de relação que buscamos construir no MBM, onde a relação é horizontal e a confiança vem em primeiro lugar” diz Richard.
Para ajudar no custeio de despesas essenciais, o MBM optou pela flexibilização do recurso inicialmente destinado a um projeto específico, para que pudesse ser usado para pagar custos operacionais, como o pagamento de funcionários, contas de aluguel, luz e outras despesas.
Para Silvia Morais, diretora do Synergos no Brasil, é fundamental que esse tipo de doação cresça no país, ou assistiremos a uma redução do número de organizações da sociedade civil, que são frutos de anos de exercício de cidadania e formação de capital e tecido social. O Synergos é uma organização internacional que promove o fortalecimento da prática de doadores, especialmente os filantropos individuais, familiares e corporativos.
“Os recursos flexíveis permitem a prática da resiliência em situações de risco à perenidade das organizações, como a que estamos vivendo atualmente, mas também ampliam as possibilidades da organização inovar, identificar possibilidades de evolução e amadurecimento institucional, atender às emergências e imprevistos que sempre ocorrem na rotina de seus projetos e, algo muito importante atualmente, não depender de recursos governamentais, porque uma organização que depende de recursos governamentais pode ter sua voz e influência sobre o governo reduzida”, destaca Silvia.
A realidade é que os investidores sociais têm pouquíssimo apetite ao risco. Principalmente porque há um risco reputacional atrelado ao nome da empresa ou família que está por trás do investimento social. Mas, segundo a especialista, com transparência e gestão, é possível mitigar os riscos.
“A confiança é a melhor forma de mitigação de risco. Ela se dá em relações de mais longo prazo, com monitoramento baseado na proximidade e não orientado pelo controle, baseado por atitudes de colaboração e parceria, em assistir o processo decisório de uma organização e compreender as escolhas do parceiro. A confiança não é algo dado, é algo construído na relação entre doadores e donatários desde o seu processo embrionário e a confiança por si, além de garantir resultados mais amplos, profundos e estruturais, possibilita a redução de riscos reputacionais”, conclui Silvia.
E como resultado dessa flexibilização do investimento do MBM, todas as 50 organizações sociais seguem ativas e, de acordo com a avaliação do Instituto PHI, conseguiram praticamente dobrar o número de beneficiários diretos atendidos. Esse é o poder do recurso filantrópico flexível, esse é o poder da confiança.
*Faça o download
Brasil Giving Report 2020